Festas Religiosas

A PÁSCOA
( Recolha efectuada na freguesia de S. Bartolomeu de Messines pela Luísa Conduto, Paula Vasconcelos e Rui Cuiça )

Sr. Mateus da Silva Sequeira, 87 anos, viúvo

“A Páscoa era uma festa mais familiar e também mais séria, mas nós também cantávamos e divertíamo-nos.
A Páscoa resumia-se a isto: cada um comia e bebia, em sua casa com a família, e estava satisfeito da vida, porque naquele tempo, os casais eram sempre bem vividos. Eles não se zangavam com as mulheres. Muitas vezes, pelo contrário, eram elas que se zangavam com eles, porque bebiam muito.
Era assim que nós vivíamos a Páscoa.”

- Então, e nesse tempo faziam contratos?
“Faziam. Ora, as pessoas com quem se faziam os contratos passavam a chamar-se “padrinhos” e quando se encontravam na rua, voltavam-se uns para os outros e diziam:
-Olha, ali vai o padrinho!
Os contratos também eram feitos entre rapazes e raparigas, mas elas, às vezes, quando nos viam, escondiam-se.
No dia de aleluia, quando nos encontrávamos, o primeiro que dissesse “padrinho”, ganhava o folar ou as amêndoas.”

Srª Dª Evengelina Miguel de Sousa, 66 anos, viúva

“Nos meus tempos de garota, quando havia bailes, estes terminavam logo depois da meia noite de terça feira de Carnaval, porque, no dia seguinte, era quarta feira de cinzas.
Aliás, os meus pais diziam-nos logo:
Podem dançar até à meia noite porque depois já não se dança”.
Na quarta feira de cinzas jejuávamos sempre e, durante a quaresma, havia mais dias em que também se jejuava. Eram as sextas feiras, o dia de S. José e o dia da Encarnação. Nesses dias comíamos, apenas, pão e água. A minha mãe fazia sempre isto, na véspera e no próprio dia.
Também fazíamos uma reza que era assim – rezávamos 50 Avé-Marias e, por cada uma delas, benzíamo-nos e persignávamo-nos.
Naquela altura, também havia o hábito dos Contratos. Especialmente a gente nova gostava de fazer contratos, para depois receber as amêndoas no dia de Páscoa.
Nas vésperas da aleluia, andávamos sempre a ver quem é que perdia as amêndoas. Por isso, escondíamo-nos para provocar os encontros, porque aquele que primeiro avistasse e que primeiro pedisse, era o que ganhava as amêndoas.
No dia da Procissão de Ramos, que era a procissão feita com as palmas bentas, tiravam-se umas palmas que se cruzavam. Juntavam-se, então, quatro rapazes ou raparigas e cada um puxava para seu lado.
Aqueles que tivessem agarrado as duas pontas da mesma palma, ficavam compadres. O mesmo se passava com o outro par. Era assim este hábito engraçado e que, no entanto, não deixava de atrair o convívio e a confraternização entre os Cristãos, o que hoje já não se vê.
Antigamente as Aleluias eram sempre ao meio dia.
Além disso, também havia o banho, ou seja, as pessoas gostavam de tomar banho e, naquele tempo, como não havia piscinas, mas ribeiras e tanques ( ou nalguns casos a praia ) as pessoas tomavam sempre um banho, ao meio dia, no sábado de Aleluia.
Embora já um pouco longe, são estas as coisas de que me lembro...

- A Senhora lembra-se da cerimónia do Lava-Pés?
“Sim. Também era uma cerimónia a que gostávamos muito de assistir, em silêncio, e com muito respeito. Para este ritual do Lava-Pés, geralmente, eram sempre escolhidos doze pobres da freguesia. Eram convidados com bastante antecedência e eles, coitadinhos, ficavam todos contentes. Mesmo aqueles que nunca se lavavam, naquele dia, apareciam todos arranjadinhos. Depois, o Sr. Prior lavava-lhes os pés, beijava-os e dava-lhes um pacotinho de amêndoas, o que os deixava todos contentes. Parece-me, mas não me lembro muito bem, que também lhes dava uma pequena flor. Parece-me que era assim.
Sim. O Sr. Prior dava-lhes uma florzinha que eles colocavam na lapela e um saquinho de amêndoas”.

- E quanto às procissões?
“Sabem. Nós aqui nunca podíamos fazer a procissão do Encontro, como geralmente se faz noutros lugares, porque não tínhamos a imagem de Nosso Senhor dos Passos, mas fazíamos as outras.
Logo na quarta feira de cinzas começávamos com as cerimónias da Semana Santa, e a primeira era constituída pelas "trevas".
A Igreja vestia-se de luto e todas as capelas eram cobertas com panos pretos. Havia várias cerimónias durante todas as noites, e, na Igreja, ainda lá está um círio com muitas velas dos lados que se iam apagando durante as cerimónias, e, às quais nós gostávamos de assistir do princípio ao fim.
Na sexta feira santa havia a procissão da Nossa Senhora, do Sr. João e do Senhor no tumbinho ( túmulo ). Nesse dia, todas as pessoas dos arredores vinham a São Bartolomeu de Messines preparadas para ficar durante o dia e para a noite assistir à procissão. Abalávamos de manhã para estarmos presentes nas cerimónias e nas procissões que duravam muito tempo, porque eram muito grandes e todos procuravam tomar parte.
Também nos reuníamos ao domingo. Por exemplo. Eu era do campo, um bocadinho distante - aí uns 7 Kms da Vila – mas vinha todos os domingos. Saía de casa de manhã e já sabia que era para estar aqui o dia inteiro. Assistíamos à missa e tínhamos os convívios ou reuniões da “fé católica”. Gostávamos muito desses convívios porque acabávamos por reunir aqui as raparigas novas de todas as aldeias vizinhas: Cumeada, Portela, Barrocal, Benaciate, etc.
Durante a quaresma, as procissões eram feitas à noite.
Actualmente, durante o período da Páscoa, só se faz a procissão do Domingo de Páscoa, à qual ocorre sempre muita gente, mesmo gente do campo, e, eu, pessoalmente, gosto muito desta procissão. Todas as outras que eram feitas nesta época do ano, desapareceram.
Antigamente, até se fazia uma procissão à Ermida de S. Pedro, no Sítio do Furadouro, onde se levava a imagem de Nossa Senhora. Era uma procissão em que toda a gente tomava parte.
Pois, quanto à Páscoa, não tenho assim mais nada a dizer, a não ser que a procissão do domingo de Páscoa nunca foi esquecida. Se calhar hoje ainda ocorre mais gente do que antigamente, e isso, talvez, se deva ao facto de ser uma das únicas que se faz durante o ano.”

Festas Religiosas

A PÁSCOA
( Recolha efectuada na freguesia de Silves pela Beatriz Cabrita, Anabela Lourenço e Isabel Luís )

Sr. Hernani Correia Gordinho, 73 anos, casado

“A Páscoa era diferente. Era vivida de outro modo. Na quarta-feira de cinzas ( dia a seguir à terça-feira de Carnaval ) começava a Quaresma e as pessoas deixavam de comer carne. Só se podia comer se se tivesse a bula, mas às sextas-feiras, com bula ou sem ela, não se podia comer.
As procissões eram diferentes e começavam no Domingo de Passos.
Nos dias de procissão, na rua e em frente da Igreja, as pessoas armavam os tabuleiros e vendiam amêndoas, amendoins, rebuçados e pirolitos.
As ruas da cidade, por onde a procissão passava, estavam cheias de “rasmono” ( ramos de rosmaninho, branco e roxo ) e as sacadas e algumas janelas das casas eram cobertas com colchas.
As pessoas que iam nas procissões ( “era tudo gente fina – hoje já não se vê – aquilo era tudo de respeito” ) usavam uma opa em cima do fato. A opa era uma espécie de casaco de pano muito fino, roxa, cor de rosa ou branca.
Na quinta-feira, antes do Domingo de Páscoa, havia a cerimónia do “lava-pés”. Nesse dia, o Sr. Prior lavava os pés das pessoas mais humildes da cidade.
O Domingo de Páscoa era guardado para se visitar as pessoas amigas e a família. Os homens vestiam calça de fantasia, casaco preto e gravata ou laço vermelho ( “na sexta-feira santa, o laço ou a gravata eram sempre pretos” ). Juntavam-se, então, três ou quatro famílias e comiam carne, porque durante a Quaresma só podia comer carne quem tivesse comprado a bula.
Depois do jantar, dançava-se pela noite fora, porque sempre havia um ou outro que tocava bandolim, acordeão, harmónica ou outra coisa qualquer.”

Os Contratos

Sr. Hernani Correia Gordinho, 73 anos, casado.

“Os contratos eram um costume antigo e eram celebrados entre os rapazes, entre as raparigas, ou entre os rapazes e as raparigas, no domingo de Ramos.
Pegávamos nas folhas das palmeiras, uma, duas, as que calhavam, e, abríamos ao meio, fazendo de cada, duas tiras. Então, juntavam-se quatro ou cinco tiras e entrançavam-se. Cada um segurava a sua “trança” e estendia-a a quem queria que fosse seu “compadre” ou “comadre”. Esse ou essa tirava a sua tira... Eu ficava com uma, outro ficava com outra, e, era assim.
Enquanto se desentrançava, os futuros “compadres” tinham que dizer ao mesmo tempo:

“Compadres, compadres,
compadres seremos,
no sábado de aleluia
desmancharemos”.

A partir desse momento, passávamos a ser compadres e comadres e, só no ano seguinte, no sábado de aleluia ( que é o dia antes do domingo de Páscoa ) é que se desmanchava o contrato.
Durante o ano, sempre que nos encontrávamos, cumprimentávamo-nos assim: “Olá compadre! Olá comadre!”... e, ser compadre e comadre era, para nós, uma grande prova de amizade.
Era raro o rapaz e a rapariga que não fazia os seus contratos com os amigos. Era uma tradição muito antiga, entre os miúdos, no período da Páscoa, mas que agora pouco se vê. São outros tempos, eu sei, mas faz pena que estes costumes se percam...”

Srª Dª Maria Vícia Pontes, 64 anos, viúva.

“Só na parte religiosa, realmente, é que eu acho que há diferenças no modo como, hoje, se vive o período da Páscoa.
As cerimónias da Semana Santa, a que se dava o nome de “Endoenças”, eram muito diferentes. Havia um maior respeito no modo como as coisas se processavam. Todo o ritual era outro. Por exemplo, havia o período das “trevas” que começava na 4ª feira santa e ia até ao sábado ao meio dia, altura das Aleluias ( hoje as aleluias são à meia noite ).
O respeito era tanto que, a partir do meio dia de quinta-feira, todas as pessoas deixavam de trabalhar – não se cavava a terra, não se lavava, não se cultivava, e, as pessoas vestiam-se quase sempre de preto. Era respeitada a semana de luto.
Também há uma coisa que hoje pouco se cumpre, e, se se faz, faz-se de modo diferente. É o jejum.
As pessoas jejuavam. Eu recordo-me da minha mãe jejuar a pão e água. Era, realmente, um grande sacrifício... Pela manhã, ou seja, ao pequeno almoço, as pessoas comiam um bocadinho de pão seco e bebiam um copo de água. Ao meio dia ( almoço ) e à noite, não passavam disto.
Outras pessoas, por exemplo, almoçavam bem, na quinta-feira santa, geralmente, bacalhau com batatas e grão, e, só voltavam a comer, de novo, na sexta-feira, depois do meio dia. Jejuavam 12 horas. Era realmente um grande sacrifício, mas que as pessoas faziam com muita fé e devoção...
Durante a Quaresma, sobretudo durante a semana santa, as pessoas não comiam carne, e, se o queriam fazer, tinham que comprar a bula para estar isentas, mas, na quarta, quinta e sexta feiras santas, ninguém ( isto é, as pessoas que tinham fé ) comia qualquer tipo de carne. No sábado, como as aleluias eram ao meio dia, já se podia comer. Agora não, porque as aleluias só são à meia noite.
Mas já então ( tradição, felizmente, que ainda se mantém ) comia-se, durante o período da Páscoa, o folar, espécie de pão doce, que se enfeitava com um ovo cozido ,ao centro, ou com amêndoas descascadas.

( Não se sabe, ao certo, donde vem esta tradição dos folares da Páscoa.
No entanto, e, curiosamente, encontrei no IV Volume das “Lendas de Portugal”, de Gentil Marques, uma lenda tradicional sobre o folar da Páscoa que não resisto a invocar.
Assim, no Capítulo das Lendas do presente trabalho, apresento-a como explicação popular desta tradição. )

No domingo de Páscoa, ninguém comia ave ou animal de penas. E ninguém comia, porque enquanto Pedro negou, por três vezes, Cristo, um galo cantou... Hoje, ainda há algumas pessoas, mais idosas, que respeitam esta tradição.
Geralmente, comia-se ( ou come-se ) o cabrito assado, que é o prato da Páscoa, e, é o cabrito porque, quando o Senhor partiu para o Egipto, pediu que lhe levassem cabritos.
Hoje, já é diferente, mas, antigamente, era muito respeitado, e, em minha casa, sempre foi assim...
Mas voltemos às cerimónias da semana santa ( as Endoenças ).
Até a nossa Igreja era diferente. Nessa altura, tinha muita talha dourada e durante o “período das trevas” os altares estavam todos tapados.

Na quarta feira santa, havia a narração da paixão do Senhor.
Na quinta feira, dia em que começavam as cerimónias mais importantes, desnudavam-se os altares, em sinal de luto, os sinos da Sé eram presos e todas as campaínhas se silenciavam. Eram as trevas.
Havia, durante a tarde, a cerimónia do lava pés em que o Sr. Prior, em sinal de penitência, reunia os mais humildes da cidade, e, como Cristo fizera, publicamente, lavava-lhes os pés.
Na sexta feira havia a via sacra que, antigamente, era feita pelas ruas da cidade, e, a adoração da cruz. Às três da tarde, hora em que Cristo morreu, toda a gente guardava três minutos de silêncio. À noite, havia a procissão do enterro.
Durante o dia de sábado, ao meio dia, havia as aleluias: soltavam-se os sinos, descobriam-se os altares, acendiam-se todas as luzes da Sé e tocavam-se as campaínhas. À tarde, havia a benção do lume, do incenso, do círio pascal, dos santos óleos e da água que eram utilizados, ao longo do ano, nas cerimónias do baptismo e da extrema unção.
Como atrás referi, a estas cerimónias chamavam-se as Endoenças. Não eram celebradas em todas as terras, porque tornavam-se muito dispendiosas. Sei que se realizavam em Faro e em Silves.
Eram precisos não sei quantos pares e quantos círios com 14 velas cada um. Acendiam-se as velas e recitavam-se os cânticos em latim. No final de cada cântico, apagava-se uma vela, e assim sucessivamente. Eram realmente cerimónias muito bonitas, mas muito demoradas e caras, razão porque nem todas as paróquias as realizavam.
Quanto às procissões, a mais importante que se fazia, em Silves ( e que ainda continua ), era a de Nosso Senhor dos Passos. Era uma tradição tão respeitada que até se costumava dizer Passos em Silves, Ramos em Tavira e Endoenças em Sevilha. Eram procissões de tamanho brilho que, realmente, as pessoas tinham orgulho nas mesmas, e, só para vos dar um exemplo do esplendor da festa, posso-vos contar que, no tempo do Conde de Silves, era ele que levava o pendão. Nas borlas iam as pessoas mais importantes da terra, todos vestidos de casaca, luva branca e chapéu alto. Os restantes acompanhantes também iam vestidos a rigor.
Acho que a tradição das procissões é uma coisa que não se devia perder, até porque as pessoas têm as suas devoções e as nossas procissões são realmente muito bonitas.”

Festas Religiosas

A PÁSCOA
( Recolha efectuada na freguesia de Silves pela Beatriz Cabrita, Anabela Lourenço e Isabel Luís )

Sr. Hernani Correia Gordinho, 73 anos, casado

“A Páscoa era diferente. Era vivida de outro modo. Na quarta-feira de cinzas ( dia a seguir à terça-feira de Carnaval ) começava a Quaresma e as pessoas deixavam de comer carne. Só se podia comer se se tivesse a bula, mas às sextas-feiras, com bula ou sem ela, não se podia comer.
As procissões eram diferentes e começavam no Domingo de Passos.
Nos dias de procissão, na rua e em frente da Igreja, as pessoas armavam os tabuleiros e vendiam amêndoas, amendoins, rebuçados e pirolitos.
As ruas da cidade, por onde a procissão passava, estavam cheias de “rasmono” ( ramos de rosmaninho, branco e roxo ) e as sacadas e algumas janelas das casas eram cobertas com colchas.
As pessoas que iam nas procissões ( “era tudo gente fina – hoje já não se vê – aquilo era tudo de respeito” ) usavam uma opa em cima do fato. A opa era uma espécie de casaco de pano muito fino, roxa, cor de rosa ou branca.
Na quinta-feira, antes do Domingo de Páscoa, havia a cerimónia do “lava-pés”. Nesse dia, o Sr. Prior lavava os pés das pessoas mais humildes da cidade.
O Domingo de Páscoa era guardado para se visitar as pessoas amigas e a família. Os homens vestiam calça de fantasia, casaco preto e gravata ou laço vermelho ( “na sexta-feira santa, o laço ou a gravata eram sempre pretos” ). Juntavam-se, então, três ou quatro famílias e comiam carne, porque durante a Quaresma só podia comer carne quem tivesse comprado a bula.
Depois do jantar, dançava-se pela noite fora, porque sempre havia um ou outro que tocava bandolim, acordeão, harmónica ou outra coisa qualquer.”
Os Contratos
Sr. Hernani Correia Gordinho, 73 anos, casado.

“Os contratos eram um costume antigo e eram celebrados entre os rapazes, entre as raparigas, ou entre os rapazes e as raparigas, no domingo de Ramos.
Pegávamos nas folhas das palmeiras, uma, duas, as que calhavam, e, abríamos ao meio, fazendo de cada, duas tiras. Então, juntavam-se quatro ou cinco tiras e entrançavam-se. Cada um segurava a sua “trança” e estendia-a a quem queria que fosse seu “compadre” ou “comadre”. Esse ou essa tirava a sua tira... Eu ficava com uma, outro ficava com outra, e, era assim.
Enquanto se desentrançava, os futuros “compadres” tinham que dizer ao mesmo tempo:

“Compadres, compadres,
compadres seremos,
no sábado de aleluia
desmancharemos”.

A partir desse momento, passávamos a ser compadres e comadres e, só no ano seguinte, no sábado de aleluia ( que é o dia antes do domingo de Páscoa ) é que se desmanchava o contrato.
Durante o ano, sempre que nos encontrávamos, cumprimentávamo-nos assim: “Olá compadre! Olá comadre!”... e, ser compadre e comadre era, para nós, uma grande prova de amizade.
Era raro o rapaz e a rapariga que não fazia os seus contratos com os amigos. Era uma tradição muito antiga, entre os miúdos, no período da Páscoa, mas que agora pouco se vê. São outros tempos, eu sei, mas faz pena que estes costumes se percam...”

Srª Dª Maria Vícia Pontes, 64 anos, viúva.

“Só na parte religiosa, realmente, é que eu acho que há diferenças no modo como, hoje, se vive o período da Páscoa.
As cerimónias da Semana Santa, a que se dava o nome de “Endoenças”, eram muito diferentes. Havia um maior respeito no modo como as coisas se processavam. Todo o ritual era outro. Por exemplo, havia o período das “trevas” que começava na 4ª feira santa e ia até ao sábado ao meio dia, altura das Aleluias ( hoje as aleluias são à meia noite ).
O respeito era tanto que, a partir do meio dia de quinta-feira, todas as pessoas deixavam de trabalhar – não se cavava a terra, não se lavava, não se cultivava, e, as pessoas vestiam-se quase sempre de preto. Era respeitada a semana de luto.
Também há uma coisa que hoje pouco se cumpre, e, se se faz, faz-se de modo diferente. É o jejum.
As pessoas jejuavam. Eu recordo-me da minha mãe jejuar a pão e água. Era, realmente, um grande sacrifício... Pela manhã, ou seja, ao pequeno almoço, as pessoas comiam um bocadinho de pão seco e bebiam um copo de água. Ao meio dia ( almoço ) e à noite, não passavam disto.
Outras pessoas, por exemplo, almoçavam bem, na quinta-feira santa, geralmente, bacalhau com batatas e grão, e, só voltavam a comer, de novo, na sexta-feira, depois do meio dia. Jejuavam 12 horas. Era realmente um grande sacrifício, mas que as pessoas faziam com muita fé e devoção...
Durante a Quaresma, sobretudo durante a semana santa, as pessoas não comiam carne, e, se o queriam fazer, tinham que comprar a bula para estar isentas, mas, na quarta, quinta e sexta feiras santas, ninguém ( isto é, as pessoas que tinham fé ) comia qualquer tipo de carne. No sábado, como as aleluias eram ao meio dia, já se podia comer. Agora não, porque as aleluias só são à meia noite.
Mas já então ( tradição, felizmente, que ainda se mantém ) comia-se, durante o período da Páscoa, o folar, espécie de pão doce, que se enfeitava com um ovo cozido ,ao centro, ou com amêndoas descascadas.

( Não se sabe, ao certo, donde vem esta tradição dos folares da Páscoa.
No entanto, e, curiosamente, encontrei no IV Volume das “Lendas de Portugal”, de Gentil Marques, uma lenda tradicional sobre o folar da Páscoa que não resisto a invocar.
Assim, no Capítulo das Lendas do presente trabalho, apresento-a como explicação popular desta tradição. )

No domingo de Páscoa, ninguém comia ave ou animal de penas. E ninguém comia, porque enquanto Pedro negou, por três vezes, Cristo, um galo cantou... Hoje, ainda há algumas pessoas, mais idosas, que respeitam esta tradição.
Geralmente, comia-se ( ou come-se ) o cabrito assado, que é o prato da Páscoa, e, é o cabrito porque, quando o Senhor partiu para o Egipto, pediu que lhe levassem cabritos.
Hoje, já é diferente, mas, antigamente, era muito respeitado, e, em minha casa, sempre foi assim...
Mas voltemos às cerimónias da semana santa ( as Endoenças ).
Até a nossa Igreja era diferente. Nessa altura, tinha muita talha dourada e durante o “período das trevas” os altares estavam todos tapados.

Na quarta feira santa, havia a narração da paixão do Senhor.
Na quinta feira, dia em que começavam as cerimónias mais importantes, desnudavam-se os altares, em sinal de luto, os sinos da Sé eram presos e todas as campaínhas se silenciavam. Eram as trevas.
Havia, durante a tarde, a cerimónia do lava pés em que o Sr. Prior, em sinal de penitência, reunia os mais humildes da cidade, e, como Cristo fizera, publicamente, lavava-lhes os pés.
Na sexta feira havia a via sacra que, antigamente, era feita pelas ruas da cidade, e, a adoração da cruz. Às três da tarde, hora em que Cristo morreu, toda a gente guardava três minutos de silêncio. À noite, havia a procissão do enterro.
Durante o dia de sábado, ao meio dia, havia as aleluias: soltavam-se os sinos, descobriam-se os altares, acendiam-se todas as luzes da Sé e tocavam-se as campaínhas. À tarde, havia a benção do lume, do incenso, do círio pascal, dos santos óleos e da água que eram utilizados, ao longo do ano, nas cerimónias do baptismo e da extrema unção.
Como atrás referi, a estas cerimónias chamavam-se as Endoenças. Não eram celebradas em todas as terras, porque tornavam-se muito dispendiosas. Sei que se realizavam em Faro e em Silves.
Eram precisos não sei quantos pares e quantos círios com 14 velas cada um. Acendiam-se as velas e recitavam-se os cânticos em latim. No final de cada cântico, apagava-se uma vela, e assim sucessivamente. Eram realmente cerimónias muito bonitas, mas muito demoradas e caras, razão porque nem todas as paróquias as realizavam.
Quanto às procissões, a mais importante que se fazia, em Silves ( e que ainda continua ), era a de Nosso Senhor dos Passos. Era uma tradição tão respeitada que até se costumava dizer Passos em Silves, Ramos em Tavira e Endoenças em Sevilha. Eram procissões de tamanho brilho que, realmente, as pessoas tinham orgulho nas mesmas, e, só para vos dar um exemplo do esplendor da festa, posso-vos contar que, no tempo do Conde de Silves, era ele que levava o pendão. Nas borlas iam as pessoas mais importantes da terra, todos vestidos de casaca, luva branca e chapéu alto. Os restantes acompanhantes também iam vestidos a rigor.
Acho que a tradição das procissões é uma coisa que não se devia perder, até porque as pessoas têm as suas devoções e as nossas procissões são realmente muito bonitas.”

Festas Profano-Religiosas

O CANTAR DOS REIS
( Recolha efectuada na freguesia de S. Marcos da Serra, Sítio da Sapeira, pelo Marco Santinho e pelo Nuno da Palma Reis )

Srª Dª Maria Joaquina dos Santos, 66 anos, casada

“Já lá vai Zé mais Maria
já lá vão para Belém
se eles vão cantar os Reis
nós vamos cantá-los também.

Somos três cavalheiros
que fazemos sombra no mar
somos (...)
que Jesus vamos adorar.

Não procurei, pedi pousada
nem por quem a possa dar
procurei pelo Deus menino
e onde o iremos achar.

Vamos achá-lo em Roma
revestido no altar
com dez mil almas à roda
todas elas para comungar.

S. João ajuda a missa
S. Pedro ajuda o missal.
S. João ajuda a missa
S. Pedro ajuda o missal.”

Festas Profano-Religiosas

O CANTAR DE REIS
( Recolha efectuada em Silves, no Sítio dos Canhestros, em conversa havida com o Sr. Joaquim Rosa Mogo, 76 anos, casado, e, com sua filha, Srª Dª Guiomar Mogo do Nascimento, casada )

Sr. Joaquim Rosa Mogo, 76 anos, casado

“Quando os meus filhos eram gaiatos e estavam ainda todos em casa, a Guiomar, o António José, o Aprígio e a Luísa – a Noémia era ainda muito pequenina para estas coisas – costumávamos sempre cantar as Janeiras, nas vésperas do primeiro dia do ano, e, os Reis, nas vésperas do dia dos reis santos – antigamente, ao dia de Reis chamava-se o “dia dos homens honrados” – isto é, na noite de 6 de Janeiro.
Todos os anos, por essas datas, eu, os moços e um vizinho nosso, o José Luís, que tocava muito bem harmónio e nos acompanhava nestes cantos, percorríamos as casas das redondezas, a cantar as Janeiras e os Reis.
Como já sabem como se cantavam as Janeiras, aqui vai o modo como se cantavam os Reis...

“São chegados os três reis
à porta do Oriente
vieram oferecer
cada um o seu presente.

Uns ofereciam ouro
para o menino olhar
outros ofereciam prata
para o Menino brincar.

Menino tão pequenino
com oito dias nascido
veio ao mundo para nos salvar
e foi da Virgem precedido.

Não quis nascer em Belém
nem numa casa de rosas
foi nascer tão pobrezinho
nas palhinhas preciosas.

Onde estava o boi bento
e a mula maliciosa
o boi bento que tapava
com a mão a armadura
e a mula destapava
com a mão a ferradura...”

Parece-me que ainda havia mais alguns versos, mas já lá vai tanto tempo que eu não me lembro de mais. Mas era assim que, no Sítio dos Canhestros, na Barragem,"a gente" cantávamos, todos os anos, os Reis.”

Festas Profano-Religiosas

AS JANEIRAS
( Recolha efectuada na freguesia de S. Marcos da Serra, Sítio da Sapeira, pelo Marco Santinho e pelo Nuno da Palma João )

Srª Dª Maria Joaquina dos Santos, 66 anos, casada.

“Entrai, pastorinhos, entrai
por estes portões sagrados
visitar o Deus menino
numas palhinhas deitado.

Bem podia Deus nascer
num palácio de ouro fino
para bem dos meus pecados
nasceu Deus tão pobrezinho.

Indo eu p’ra Sto António
encontrei-o no caminho
numa mão levava a cruz
e na outra o Deus menino.”

Festas Profano-Religiosas

AS JANEIRAS
( Recolha efectuada na freguesia de S. Bartolomeu de Messines pela Luísa Conduto, Paula Vasconcelos e Rui Cuiça )

Sr. Mateus da Silva Sequeira, 87 anos, viúvo.

“ No meu tempo, juntávamos três camaradas e íamos, de porta em porta, cantar estes versos das Janeiras:

Esta noite é de Janeiras
é de grande merecimento
por ser a noite primeira
é a que Deus passou tormento.

Tormento que Deus passou
foi p’ra nossa salvação
foi p’ra salvar o mundo
e também os que cá não estão.

...Era uma coisa assim, mas já não me lembro muito bem.

- Quando é que costumavam cantar as Janeiras?
Era no Natal, no Ano Novo ou nos Reis?

No Natal, não! Pois, era na altura do Ano Novo. Pelos Reis, acho que também cantavam, mas era outra coisa... Já não me lembro.
Nas Janeiras, as pessoas juntavam-se e iam cantar de porta em porta, acompanhadas sempre por um tocador de harmónio.
Os donos das casa davam sempre qualquer coisa aos cantadores e aos músicos. Geralmente, quando se tratava de rapaziada nova, davam um chouriço, mas quando era gente mais velha, davam uma tigela de milho para as papas, porque, naquele tempo, era muita a miséria.
Muitas vezes, os grupos eram formados por famílias inteiras ( filhos e mães ) muito necessitados. Nesse dia, coitados, perdiam a vergonha e iam cantar, para lhes darem alguma comida. Muitas dessas famílias mais pobres viam-se obrigadas a cantar as Janeiras por necessidade.
No entanto, as Janeiras constituíam uma tradição que já vinha de muitos anos atrás.”


Sr. José dos Santos Cabrita

“No meu tempo de rapaz, as Janeiras eram as cantigas “cantadas” por um grupo de rapazes e raparigas, nas noites de 31 de Dezembro e 6 de Janeiro, vésperas de Reis. Fazíamos isso todos os anos...
... Os grupos que a gente formava eram acompanhados por um tocador de acordeão, para alegrar mais a festa, e, assim andávamos pelas Ruas da Vila, batendo de porta em porta, cantando as Janeiras, ou seja, fazendo versos aos próprios moradores.
Vou contar-vos, dos muitos que a gente tinha na altura, alguns versinhos que me vêm assim à cabeça:

“Um raminho, dois raminhos,
três raminhos de algodão,
viva a Srª Dª Ana,
mais o Sr. João.”

Depois, consoante as casa onde íamos, mudávamos os nomes aos versos, ou seja, os nomes das pessoas das casas.
Para nós, as Janeiras eram um divertimento.
Mas, antigamente, as necessidades eram muitas, e, alguns grupos iam cantar as Janeiras para acarear algumas coisas para comer, coisas que os próprios donos das casa davam, e, que, geralmente, eram chouriços, filhós, laranjas, milho, enfim, o que houvesse em maior fartura.”

- Nesse tempo as pessoas não costumavam dar dinheiro?

“Pois o dinheiro nessa altura era pouco. Havia quem pudesse dar; havia algumas pessoas que tinham possibilidades e davam, mas isso não acontecia sempre.”

- Considera o cantar das Janeiras uma tradição?

“Sim. As Janeiras sempre foram uma tradição de há muitos anos, que ia passando, na mesma família, de pais para filhos. Eu já as ouvia cantar ao meu pai e ao meu avô, porque esta tradição vinha passando de geração em geração.
Com o passar do tempo, infelizmente, acabou-se, porque se foi perdendo o hábito. A gente nova tem outros gostos e, praticamente, hoje ninguém canta as Janeiras.
Se calhar alguns dos mais novos nem sequer ouviram falar das Janeiras. Outros podem ainda ter cantado com os pais e os irmãos, mas até para estes, actualmente, as Janeiras não passam de recordações.”

- Então, hoje, o Sr. já não vê ninguém cantar as Janeiras em S. B. de Messines?

“Vejo, mas muito raramente, e os que vejo fazem parte do Rancho Folclórico de S. Bartolomeu de Messines que se juntam acompanhados do seu acordeonista e restantes instrumentos.”

Festas Profano-Religiosas

AS JANEIRAS
( Recolha efectuada na freguesia de Silves pela Beatriz Cabrita, Anabela Lourenço e Isabel Luís )

Sr. Hernani Correia Gordinho, 73 anos, casado.

“As Janeiras eram aquelas cantigas que se cantavam em grupos, nas noites de 31 de Dezembro e 6 de Janeiro.
As pessoas juntavam-se, acompanhadas de um “bandolim” ou uma “guitarra” e iam, de porta em porta, cantando alguns versos que se faziam de propósito para essas noites, ou outros que nos ensinavam os nossos pais ou que ouvíamos os nossos avós.
De início era uma brincadeira, um divertimento, que repetíamos todos os anos. Chegávamos a ir para o campo e vínhamos carregados de coisas que as pessoas nos davam: amêndoas, figos, nozes, filhós ou dinheiro, mas não fazíamos por interesse. Era um hábito. Ainda hoje me lembro de uns versos que então cantávamos:

“Na girinho,
na girote,
que é do prato da filhó?...”

Hoje, isto pouco se vê, porque os velhos morrem e os novos pouco se interessam por estas coisas.”

Mas, entre os mais novos, alguns ainda cantam as “Janeiras”, e, outros lembram-se como o faziam quando crianças. Eu, mesma, recordo, saudosa, como era, há trinta e tal anos...
... Jantávamos em casa dos avós paternos. Por volta das 22h00, saíamos, e depois de acordarmos o percurso, o grupo de primos lá seguia rua fora. Frente a uma das casas previamente escolhida, parávamos e batíamos à porta. Uma, duas, três vezes. Então, um dos mais velhos fazia um sinal, e, todo o grupo, quantas vezes desafinado, o que dava azo a algumas discussões, começava a cantar:

“...Senhora dona de casa
deixe-se estar que está bem.
Mande-nos dar a esmola
Pela rosa que aí tem...”

Geralmente, as pessoas que nos conheciam, ofereciam-nos filhós, fritos de batata doce, figos recheados com amêndoas e “estrelas” de figo. Às vezes, davam-nos algum dinheiro com que comprávamos os “pirolitos” ( custavam um tostão cada, ou dois tostões os maiores ) à “Ti” Quitéria. Tinham fama os seus pirolitos!

( Os pirolitos coniformes eram feitos de mel de abelha, com um pauzinho na base para agarrar. Eram muito moles e enrolados em papéis de várias cores. )

Depois de termos recebido os presentes, agradecíamos com a seguinte quadra:

“Agradeço a vossa esmola
dada pela vossa mão.
Na terra terá o pago
e no céu a salvação.”

Percorríamos, então, mais algumas ruas da cidade, repetindo o mesmo canto, de porta em porta.
Por volta da meia noite regressávamos a casa dos avós, felicíssimos, a fim de repartir os presentes e fazer as “queixinhas” dos que se tinham enganado...


Mário Manuel Martins Rebelo, 12 anos.

“Costumo cantar as Janeiras na véspera do dia 31 de Janeiro e nas vésperas dos Reis, portanto, nas noites de 31 de Dezembro e de 5 de Janeiro.
A ideia surgiu-me um dia, numa aula de Português. Estava a “desfolhar” ( folhear ) o livro, encontrei a canção das Janeiras e resolvi decorá-la para a cantar. Foi assim que a ideia me surgiu. Depois falei com um amigo meu, o Bruno que tem 13 anos e perguntei-lhe se ele queria ir comigo.
Isto foi há dois anos.
Então, eu, o Bruno e o meu irmão que tem 7 anos, começámos a cantar as Janeiras, mas, no ano passado, só fui eu e o meu irmão.
Nós costumamos começar a cantar aí por volta das 7.30 ( 19h30 ) até às 11 horas ( 23h00 ). Percorremos as ruas da cidade, paramos junto de uma porta, batemos e perguntamos se podemos cantar. Às vezes as pessoas dizem-nos que não porque têm doentes em casa, e, nós, como não queremos problemas, vamo-nos embora. Batemos a outra porta e quando não nos dizem nada, nós cantamos acompanhados por uns instrumentos feitos por nós. O meu irmão toca uns ferrinhos e eu uma espécie de tambor feito por mim: pego numa lata, tapo a boca com um pano fino e amarro uma corda muito apertada, para esticar e segurar o pano. Depois, com um ferrinho, forrado numa das pontas com um pano para não rasgar o tecido do tambor, toco.
É assim que nós acompanhamos os versos que cantamos:

Um raminho, dois raminhos,
cada ramo, seu enfeite,
viva o dono desta casa
que esta vai em seu respeito.

Um raminho, dois raminhos,
três raminhos em flor,
viva também os seus filhos
que esta vai em seu favor.

A silva que nasce, à porta vai beber,
a cantareira levante-se, ai senhora,
venha-nos dar as Janeiras
em louvor de Deus menino.

Em louvor de Deus menino
venha-nos dar as Janeiras
porque somos de muito longe
não podemos cá voltar.

Festas Profano-Religiosas

O NATAL
( Recolha efectuada na freguesia de S. Bartolomeu de Messines pela Luísa Conduto, Paula Vasconcelos e Rui Cuiça )

Srª Dª Evangelina Miguel de Sousa, 66 anos, viúva.

“Pelo Natal era costume reunir-se toda a família. Mesmo os irmãos que, entretanto, tinham partido para longe, vinham todos passar juntos a época do Natal.
Era tradição matar o porco nas vésperas, e, assim, no dia de Natal havia sempre carne fresca. Também era tradição guardar um galo para essa altura, mas quando as famílias eram muito numerosas, sim, porque naquele tempo, cada família tinha sete ou oito filhos, o galo era substituído por um perú, porque dava para mais gente.
Reunir toda a família, nessa época, constituía sempre uma grande alegria...
No dia de Natal, ao almoço e ao jantar, comia-se, geralmente, a carne do porco frita, acompanhada com fatias de pão passadas por ovo.
Na véspera do dia de Natal, à ceia, comia-se o galo ou o perú.
A ceia do Natal e as refeições do dia de Natal eram, sempre, acompanhadas com vinho de colheitas próprias, porque, naquele tempo, quase toda a gente fazia o seu vinho para consumo próprio, e, na época de Natal este nunca era dispensado.
No dia de Natal, depois do almoço, costumávamos dar um passeio pela aldeia, visitávamos os amigos, andávamos de uma casa para a outra, e, provávamos o vinho de todos.
Na época do Natal, durante nove noites consecutivas, acendíamos um madeiro, que era chamado o “Madeiro do Natal”, com o qual se fazia um bom fogo na lareira da cozinha, fogo esse que durava as noites inteiras.
Na noite de Natal, todas as pessoas iam à missa do galo. Geralmente, estavam reunidos à volta da lareira até à meia noite, mais ou menos, altura em que se metiam a caminho para a missa.
A gente nova nunca perdia essa missa, porque era a maneira de se encontrar com rapazes e raparigas de outras aldeias. Mas, havia sempre uma pessoa mais velha que os acompanhava, para manter o respeito, e, lembro-me que o meu pai era muitas vezes escolhido para acompanhar-nos.
Antigamente, não era costume armar-se a árvore de Natal, era mais a tradição do madeiro na lareira.
A rapaziada nova organizava, muitas vezes, uns bailaricos em casas particulares, onde os rapazes tocavam bandolim, guitarras e onde, às vezes, até arranjávamos “grafenolas” ( grafonolas ). Durante o bailarico sempre havia uns fritos para irmos comendo...e, que eu me lembre, era mais ou menos isto o que se passava pelo Natal...
O Ano Novo era a altura de se fazer as filhós de massa de pão.
Na véspera, à noite, cantávamos as Janeiras. Formávamos grupos de rapazes e raparigas, mas também havia grupos de pessoas mais velhas e mais necessitadas que, geralmente, aproveitavam para arranjar alguma comida. Toda a gente dava o que podia, mas, quase sempre era milho e pão.
Muitas vezes até conseguiam arranjar milho suficiente para encher uma saca. Então, moíam-no na mó de pedra que tinham em casa e que servia para moer a farinha das papas.
A rapaziada nova, essa gostava mais de petiscar, por isso pediam chouriço ou bocados de toucinho para, no fim, comerem. As cantigas que cantavam eram orientadas de maneira a pedirem o que queriam, e, as raparigas gostavam muito que eles lhes fossem cantar às portas, porque os rapazes tinham sempre os versos destinados a cada uma delas.

“Ai Senhora, venha-nos dar as Janeiras
em louvor de Deus Menino.

Em louvor de Deus Menino
venha-nos dar as Janeiras
porque somos de muito longe
não podemos cá voltar”.

O dia de Ano Novo era dia santo e, portanto, ninguém trabalhava. Todos procuravam passear ou visitar os amigos, e, os mais novos, na tarde do dia de Ano Novo, faziam os seus bailaricos.
Nas vésperas do dia de Reis, à noite, também se saía para cantar. Eram cantigas diferentes das Janeiras, mas a finalidade era a mesma.
Antigamente, ao dia de Reis chamava-se o “o dia dos homens honrados”.
Era costume fazer-se a prova do vinho, ou seja, convidar-se os amigos para provar o vinho e, nesse dia, também porque era dia santo, ninguém trabalhava.
Havia um ditado muito antigo que dizia, mais ou menos, isto: “para haver dinheiro todo o ano numa casa, deve-se guardar romãs, e, comê-las no dia de Reis.

Festas Populares

O ENTRUDO
( Recolha efectuada na freguesia de S. Bartolomeu de Messines pela Luísa Conduto, Paula Vasconcelos e Rui Cuiça )

Sr. Mateus da Silva Sequeira, 87 anos, viúvo.

“O Carnaval era, geralmente, festejado por um grupo de rapazes e raparigas mascarados que cantavam e dançavam, acompanhados por um tocador de “harmónia” ( harmónica/acordeão ).
Outras vezes, esse mesmo grupo montava-se em bestas e percorria todas as casas da vila e das aldeias vizinhas. Batiam às portas e os donos das casas ofereciam um copo ao tocador.”

- Então, naquele tempo não havia bailes?

“Havia, sim senhor. Mas mesmo assim, os grupos que se formavam, dançavam em todas as casas onde entravam, isto, claro, se os donos não se importassem.”

- E não costumavam fazer o enterro do Entrudo?

“Faziam, sim senhor. Era também um grupo de rapazes que enterrava o Entrudo numa cova. Depois deitava-lhe fogo.”


Sr. José dos Santos Cabrita, 42 anos, casado.

-Sr. Cabrita, o senhor ainda se lembra do Carnaval em Messines?

“Bem. O Carnaval, segundo me lembro – pois o tempo passa e a memória já não recorda tudo o que devia – era uma festa alegre, totalmente diferente do Carnaval que hoje se festeja aqui em Messines.
Actualmente, as únicas coisas que se fazem para festejar o carnaval são os bailes e nada mais, por isso até me atrevo a dizer que o carnaval hoje só tem de carnaval o nome, comparado com o de outros tempos.
A juventude, antigamente – penso eu – era mais organizada e tinha mais iniciativas, pois, no nosso tempo, nós é que tínhamos que fazer as máscaras e o vestuário ( as primeiras de papelão, o segundo de lençóis velhos ) enquanto que agora é só ir às lojas e comprar as máscaras e as fantasias. O Carnaval, no nosso tempo, era muito mais divertido, uma vez que éramos nós que fazíamos tudo, o que dava muito mais interesse.
Há anos, aqui em S. Bartolomeu de Messines, ainda se realizaram várias “Batalhas de Flores”, bem organizadas, com alguns carros alegóricos que percorriam algumas das principais ruas de Messines e que terminavam na Rua da Liberdade ( Rua do Cinema ).
No nosso tempo usávamos como instrumentos de carnaval os saquinhos atados com um fio. A farinha e a água eram indispensáveis, nesses dias de festa.
Também era costume enterrar o Entrudo, fazendo um enterro simbólico. Ou seja. Fazíamos um boneco de trapos que ora enterrávamos, ora queimávamos, e, que significava o fim do Carnaval.
Ainda me lembro quando formávamos um grande grupo de rapazes e raparigas, todos “entrouxados” ( mascarados ) percorrendo as ruas da Vila. Íamos de porta em porta, e, por vezes, assustávamos os próprios moradores. Era uma “barrigada” de rir, porque assim vestidos, ninguém nos conhecia. Então, aproveitávamos para fazer “pirraças” ( partidas ) uma vez que “era Carnaval e nada fazia mal”. Não é assim?
Passávamos bons bocados e só é pena que os bons costumes e tradições, como o Carnaval, se venham perdendo com o passar dos tempos e que a rapaziada nova não pegue nestes costumes e lhes dê vida.
No meu tempo, a música que acompanhava estas festas era constituída por um samba ou outro, nada mais do que isso! Aliás, bastava um acordeão e, pronto! Fazíamos uma festa, onde toda a gente se divertia.
Agora já nada disto acontece, porque a juventude só quer é “batuques”. Às vezes, até chegam a beber umas cervejas a mais, ficam mal dispostos e acabam por andar à “porrada” uns com os outros.”

Festas Populares

O ENTRUDO
( Recolha efectuada na freguesia de Silves pela Carla Sacramento e Carla Machado )

Srª Dª Maria José Simões Catarino, 51 anos.

“Antigamente, na altura do Carnaval, costumavam fazer Cégadas, no Castelo, dedicadas aos mouros.
As raparigas vestiam trajes mouros, com véus na cara, e, os rapazes usavam calças da cetim às riscas de várias cores e lenços à volta da cabeça a imitar turbantes.
Eu lembro-me bem dessas Cégadas, dos trajes que as pessoas usavam e que eram muito bonitos...”

Srª Dª Maria Isabel, 69 anos.

“Como era o Carnaval, antigamente? Ora, no Carnaval, as pessoas tinham a mania de engraxar-se umas às outras com graxa preta.
Também havia, durante os dias do Entrudo, grandes bailes que duravam até de madrugada.
As pessoas, então, gostavam muito de se mascarar e os trajes que mais usavam eram os de ceifeiros e ceifeiras, ou seja, gente do campo...”


Sr. José Augusto Trindade, 66 anos.

“Querem que eu fale do Carnaval? O Carnaval era o acontecimento mais estúpido que havia durante o ano.
Era uma época marcada por uma série de “brincadeiras” bastante violentas. Por exemplo, onde hoje existe o Cinema, as pessoas faziam autênticas batalhas, atirando, umas às outras, batatas doces e pevides de alfarrobas.
Era costume, no Entrudo, enfarinhar as raparigas, mas não havia, como hoje, papelinhos e serpentinas.
Também era hábito, nesta época, assaltar-se as casas de pessoas amigas e das raparigas novas, e, eu lembro-me de, uma vez, “assaltar” uma casa onde trabalhava, como criada, uma rapariga que eu conhecia.
Durante os dias de Carnaval, as raparigas não podiam andar sozinhas na rua, porque senão eram logo “comidas”.
Quanto aos trajes carnavalescos, as Crianças, geralmente, mascaravam-se de Pierrots, Camponeses, Toureiros e Cowboys, e, as meninas vestiam-se de damas antigas. Este traje era feito em seda ou tafetá, e as saias, muito rodadas, eram compridas. Na cabeça, usavam um chapéu de palhinha especial, enfeitado com flores e fitas com que davam um laço sob o queixo.
Durante o Carnaval, havia vários bailes onde se dançava a valsa, a marcha e o foxtrot.”

Festas Populares

O ENTRUDO
( Recolha efectuada na freguesia de Silves pela beatriz Cabrita, Anabela Lourenço e Isabel Luís )

Sr. Hernani Correia Gordinho, 73 anos, casado.

“O Carnaval da minha juventude era muito diferente de hoje.
Olhando para o passado, hoje, praticamente não há Carnaval. O Carnaval de antigamente era mais comunicativo, mais alegre. Via-se Carnaval por todas as ruas. Hoje não. Hoje só se vê nas boites, nas discotecas, nos salões, nas sociedades, e, mesmo assim, já se vê pouco.
Aqui na nossa cidade, está reduzido a uma só Sociedade que é a “Música” ( Sociedade Filarmónica Silvense ). Esta ainda faz qualquer coisa, mas pouco.
Quando eu era jovem, havia aquelas grandes batalhas que consistiam no seguinte: - naquele tempo havia carros de machos, mulas e cavalos em que se juntava um grupo num, outro noutro e outro ainda no outro. Faziam-se três ou quatro quadrigas. Arranjavam-se sabugos de milho e caixas de fósforos que revestíamos com papel e enchíamos de cré, farinha ou areia. No entanto, o que era mais usado era o cré.
O cré é aquele material ( o pó ) com que se faz a massa de vidro. Com este pó enchíamos os saquinhos que constituíam as nossas “ferramentas”, as nossas “armas” de Carnaval.
Era uma alegria.
As raparigas, geralmente, punham-se à janela. Como algumas moravam no 1º ou no 2º andar, não se podia lá chegar. Então, a vingança e a nossa defesa eram aqueles sacos de cré.
Rebentávamos os sacos e depois atirávamos. Se tivéssemos a sorte de bater-lhes na cara, elas ficavam todas cheias de cré. Por seu lado, elas usavam pomada ou graxa preta que eram muito usadas na tropa.
Nós esfregávamos limões à espera do assalto. Nesses assaltos, às vezes partíamos portas, janelas ou vidros, e, chegávamos a ficar magoados, mas era sempre a brincar.
As raparigas juntavam-se 4 ou 5, nas janelas, e começavam a fazer “arrenegas” para nos provocar. Nós, então, fugíamos pelos telhados e era um “pagode”.

- Antigamente era costume enterrar-se o “entrudo” ou a “viúva”.
O Sr. lembra-se disso?

“Se me lembro. Ainda fiz parte de dois, se não estou em erro. Era um enterro simbólico. Juntavam-se todos, havia um que fazia de “morto” e que era colocado num “pangaio”, e, uns atrás dos outros, íamos percorrendo a cidade. Havia pessoas que tinham jeito para fazer versos que depois eram declamados e havia um que cantava.
Outrora dava-se ao Carnaval o nome de Entrudo e, no último dia, fazia-se o enterro. Era uma festa!
Também se faziam “assaltos”. Havia um que era para arranjar “a cabeça do gado”. Naquele tempo havia pouca carne. Só se comia carne de aves e, mesmo esta, só em dias de festa. Como havia pessoas que faziam criação e os outros sabiam, iam “assaltar” as capoeiras, mas tudo em bem, ninguém se zangava, porque era Carnaval.
Aproximadamente um mês antes começavam as máscaras. No sábado, domingo, segunda e terça de carnaval, havia muitos bailes.
Ao princípio, eu ainda dancei com Senhoras de “vestidos rojeiros”. Nós usávamos um lenço na mão direita, por causa do suor.
Como as raparigas usavam uns grandes decotes, nas costas, o contacto da nossa mão, com as costas delas, fazia-nos suar. Mas, nessa altura, não era toda a gente que usava “vestidos rojeiros”.
Nós usávamos calças às riscas que se chamavam calças de fantasia, casaco preto, laço ou gravata, e, íamos de cara destapada. Mas, nas noites que antecediam o Carnaval íamos todos mascarados.
Os homens vestiam-se de mulheres e as mulheres de homens.
O mais interessante era a “intriga”. Quem é, quem não é?
Como estavam todos mascarados, as vozes e o andar disfarçados, era difícil saber quem era aquela pessoa que nos conhecia, que nos contava coisas da nossa vida particular ou uma piada. Era uma brincadeira, mas respeitosa. E, as partidas que pregávamos!
Olhe, uma delas era a do “bilhetinho”.
Chegava alguém com um bilhetinho e dizia: - ó Maria. Manda isto ou aquilo que o teu marido pediu para vir buscar.
Quando o marido chegava a casa a mulher perguntava-lhe: para que querias tu o que mandaste buscar?
-Ó mulher, mas o que estás tu para aí a dizer? Tu não estás boa da cabeça! – respondia-lhe o marido.
Só nessa altura é que as pessoas viam que tinha sido uma brincadeira e corriam a cidade à procura dos seus autores, mas era muito raro descobrirem. E, às vezes, sem desconfiarem de nada, chegavam a convidá-los para jantar em suas casas. Mas, quando desconfiavam, convidavam-nas e ofereciam-lhes gatos, ouriços e outras “iguarias” semelhantes.”

- Sobre as danças. Hoje a música mais tocada e dançada é a brasileira. No seu
tempo também era assim?

“Não. Havia um sambinha ou outro, mas coisa pouca. Era tudo português, ou quase. Havia a valsa, o tango, o folk, o célebre corridinho, as marchas, o passe-doble e o maxixe.
Era o tempo do “mestre sala” que era um senhor contratado que nos ensinava a dançar.
Costumavámo-nos encontrar no Silves. Então, havia um, “o ceguinho”, que tocava piano e nós dançávamos uns com os outros sob as ordens do “mestre sala”. Quando nos enganávamos, ele obrigava-nos a repetir os passos. Era assim que aprendíamos a dançar.
O maxixe era uma dança parecida com o tango, muito em voga na altura.

Na Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, Frederico de Freitas dá-nos a seguinte descrição de maxixe:
Dança urbana, oriunda da cidade do Rio de Janeiro, onde apareceu pela 2ª metade do séc. XIX. Mais tarde, por volta de 1911-13, faz furor em Paris, Lisboa, etc., dançando-se em salas, teatros, cabarets, com um comportamento um tanto sensual, e, tendo na raiz um certo tropicalismo exótico e negróide. Caracteriza-se pela violência do ritmo, assemelhando-se ao samba, ao tango e à moderna polca.
Não se sabe o porquê da sua designação, e, em 1846-1935, Chiquinha Gonzaga, a conhecida compositora brasileira de maxixe, divulga-o em obras de invulgar expansão”.

Festas Populares

A MORTE DO PORCO
( “A Morte de Pórque”, na zona da beira-serra, da freguesia de Silves. Adaptação )

“… Na típica casa algarvia, onde o sossego paira e só se ouve o cantar dos pássaros ao romper da aurora, ou o galo que dá os últimos cantos da madrugada, hoje, o cenário é diferente, porque já todo o pessoal está levantado e prepara as coisas para a matança, pois a lua é propícia.
Com a chegada dos convidados e dos vizinhos dos montes próximos, os cães ladram, em sinal de boas vindas.
Como é da tradição, os homens vestem uma roupa mais usada, enquanto as mulheres preparam o tacho de arame, deitando-lhe vinagre, alhos, sal, e, ainda o “colherão” para mexer o sangue que irá “aparelhar” após a facada que o matador, com mão ágil e experiente, “atenchará” no coração do porco.
Tudo a postos, só o matador falta. Aguardam e, finalmente, ele aparece bem disposto e fanfarrão. Todos riem e logo o dono da casa grita para a sua Maria ir buscar o garrafão da melhor aguardente de medronho, com uns figos cheios de recheio de amêndoas ou empanadilhas, para matar o bicho matinal e dar calor e boa disposição. Depois do cálice correr todos, dá segunda e terceira rodada, que ninguém rejeita, porque todos são fortes e nenhum quer ficar para trás.
O matador acha que já chega e grita: “Vamos a ele!”.
Lá vão a correr para o pocilgo, abrem a porta e dois homens entram para empurrar o gordo e pesado bicho para fora.
Com insistência, sai contrariado, e assim que a última pata deixa a porta, é imediatamente agarrado, ficando quatro homens a segurar as patas, e um o focinho, que ata com um cordel forte, para evitar alguma dentada. O animal é colocado de patas para o ar, em cima de um poial de pedra, para que se possa aparar o sangue.
O matador, mais uma vez, sendo a pessoa mais célebre da cena, com fanfarronice, mata o animal de um só golpe.
Quando o sangue começa a jorrar, uma mulher vai aparando com um pouco de vinagre para não coalhar, enquanto outra, com colherão de pau, o vai mexendo.
Munidos de forquilhas com tojos a arder, os homens chamuscam as cerdas do porco, após o que começam a raspar a pele com a ajuda de facas e água fria.
Mas, a principal operação é a abertura do corpo. Todos querem ver e a repetição da frase, “se queres ver o teu corpo abre um porco”, começa a circular de boca em boca, mostrando uns aos outros que conhecem o velho ditado.
Então, o matador começa o corte através do ventre do animal até ficar com o interior à vista. Ouvem-se as mais diversas opiniões, “tem uma boa altura de toucinho”, “tem uma boa bexiga para encher”, “tem boa tripa para chouriças”, etc., etc..
O fígado, a que juntam o bofe, é a primeira víscera a ser extraída, porque a célebre jantarada da cachola é um dos principais objectivos de muitos dos que foram ajudar.
Entretanto, o porco foi escalado e as metades pesadas, para ver quantas arrobas têm, e, assim, comparar com os outros anos.

Um enorme caixote de madeira com sal é preparado para guardar e conservar a carne durante o ano. Também há quem retire uma das pernas para fazer o célebre presunto.
As mulheres, quando as tripas estão preparadas para a lavagem, cobertas com panos por causa das vespas e das moscas, mandam os moços apanhar varas para as voltar, e, lá caminham para a ribeira mais próxima, para a necessária operação. Onde há a maior corrente e água mais límpida, é o lugar mais propício para lavar as tripas e o bucho, com rodelas de limão e ramos de salsa.
Regressadas, já o restante pessoal tem tudo preparado para a adiafa, a tão desejada e apetitosa cachola ou “canchofona”, seguida da “couve”, cozido típico confeccionado com couve e carne de porco conservada em sal, e, que era matança do ano anterior, facto que é sinal de abastança e “bom governo”. Diz-se que numa casa com bom “derijo”, um porco chega a outro.
O ambiente é de festa.
Todos contam histórias e anedotas quase sempre ligadas a matanças anteriores, e o alvo do prestígio, mais uma vez, o matador, é, na realidade a figura de relevo.
Comem e bebem em bom ambiente algarvio.
Terminada a jantarada e já esgotados os repertórios, quando a noite já vai longa, aquele pessoal despede-se, com agradecimentos mútuos, uns pelos convites, outros pelas ajudas, e exclamam: “Vamos deitar uma saúde!”.

Então, em conjunto, homens e mulheres cantam:
Vou beber este copinho
à saúde do mé compadre
dés lhe dê munta saúde
e mai lá nha comadre.

À saúde dos compadres
dizes tu e com razão
é só ma vez no ano
que temos esta “função”.

Dizes tu e com razão
qu’isto é ma casa forte
‘stamos aqui todos juntos
nesta rica “morte de pórque”.

Festas Populares

O SÃO MARTINHO
( Recolha efectuada na freguesia de Silves pela Beatriz Cabrita, Anabela Lourenço e Isabel Luís)

Sr. Hernani Correia Gordinho, 73 anos, casado.


“…Ainda me lembro muito bem das festas do S. Martinho, embora nessa altura eu fosse muito miúdo. O último a que assisti, deveria ter aí, no máximo, os meus dez anos.
Havia uma Comissão Organizadora das Festas que se cotizava para comprar o vinho novo, e, isto era feito todos os anos.
Na véspera do S. Martinho, no dia 11 de Novembro, ao cair da tarde, reuniam-se todos no Largo dos Mártires. Organizavam um cortejo, muito bem ordenado, formado por homens e por mulheres… O engraçado estava precisamente aí. No cortejo, tanto se incorporavam homens como mulheres.
Era uma festa popular, de características bem populares, sobretudo, para aqueles que mais gostavam de beber.
As pessoas que seguiam no cortejo, levavam archotes acesos, e ladeavam uma padiola de madeira, onde transportavam uma pipa de vinho, um barril de 50 ou 100 litros.
Era a altura de provar o vinho novo, e, o dia 11 de Novembro era, por excelência, o dia dessa prova.
Ora, como eu ia dizendo, em cima da padiola e em cima do barril, seguia o homem mais influente dos festejos de S. Martinho, o José Jóia, que, ao longo do percurso, ia convidando “Os Irmãos” – era assim que eles se tratavam uns aos outros, por “Irmãos ou Manos da Confraria do Vinho” – a beber. Ele próprio, de vez em quando, abria a torneira do barril, vertia vinho para um jarro de barro e bebia. Nunca tinha o jarro vazio.
O cortejo – na altura em que eu assisti já não era acompanhado de música, porque as duas bandas que havia em Silves, a banda Moleira da família Mascarenhas, regeneradora, e, a banda Fralda da família Gomes Vilarinho, progressista, já se tinham dissolvido – enquanto percorria as principais ruas da cidade, ia sempre cantando cantigas alusivas ao vinho:
“Era o vinho, meu bem,
era o vinho,
era o vinho que eu mais adorava,
só por morte, meu bem,
só por morte,
só por morte eu o vinho deixava”.
De vez em quando, paravam e pediam às pessoas para que não comessem uvas porque estas faziam falta ao vinho do ano seguinte, e, se as comessem, depois não poderiam beber.
Havia, nessa altura, duas mulheres muito conhecidas em Silves por gostarem da “pinguinha”, cujas portas eram paragem obrigatória do cortejo. Então, o José Jóia cantava:
“Ó mana, ó mana,
não comas as uvas,
bebe antes o nosso vinho…”
O cortejo, sempre muito bem organizado, e, com os archotes acesos – usavam uns paus de madeira com uma das pontas forrada em pano embebido em óleo – passava junto ao cais, dava a volta à cidade e regressava ao Largo dos Mártires, onde se seguia um grande discurso sobre o vinho. Geralmente, começava assim:
“Maldita sejas tu que comes uvas, porque por tua culpa, para o ano, não teremos vinho…”, e continuava com comentários, sempre desta natureza:
“ó mano, ó mana,
o sangue do nosso suor,
o sangue puro da uva,
está aqui para se beber…”
O vinho novo, utilizado nos festejos do S. Martinho, em Silves, era colhido e tratado na região – Areias, Lobito e Lagoa – e todos os anos, e, nestes mesmos moldes, repetia-se.
Depois, talvez porque os elementos da Comissão Organizadora foram morrendo, ou porque deixaram de angariar os fundos necessários para a festa, esta desapareceu. Isto há, aproximadamente, uns sessenta anos.
Aliás, no outro dia, falando com um Senhor ainda mais velho do que eu, e, recordando, precisamente, os festejos de S. Martinho, verifiquei que as minhas lembranças coincidiam com as dele. O S. Martinho de Silves sempre se festejou desta maneira. Era um costume já antigo, uma tradição que vinha de muitos anos, mesmo de há muitos anos e que se perdeu. No entanto, era uma festa muito interessante e muito bem organizada…”

O S. MARTINHO
(Recolha efectuada na freguesia de S. Bartolomeu de Messines pela Luísa Conduto, Paula Vasconcelos e Rui Cuiça)

Srª Dª Teresa dos Santos Elias, 78 anos, viúva.

“…Olhem! Que eu me lembre, o S. Martinho, aqui em Messines, não era tão festejado pela população ( em conjunto ) como acontecia, por exemplo, com o Carnaval, mas apesar disso, não se deixava de festejar.
Comemorava-se em cada casa, em família, acompanhados pelos restantes parentes.
O meu pai – que Deus tem! – por exemplo, comprava uns quilos de castanhas e convidava os meus tios e primos para, na noite de S. Martinho, irem lá a casa, uma vez que era noite de festa.
Nessa noite era costume fazer-se um grande magusto. Se o tempo estivesse bom, fazíamo-lo na rua; se estivesse mau, acendíamos um fogo no chão de uma casa velha que tínhamos.
Entretanto, e, logo na tarde de S. Martinho, o meu pai pegava no carrinho de mão e dava uma volta pelo campo à procura de uns bons madeiros e de uma boa lenha para fazer o fogo dessa noite.
Depois do jantar, lá por volta das oito ou nove horas, o meu pai punha a lenha no fogo e fazia-o bem grande. Deixava-o arder. Mais tarde, aproveitava o braseiro para assar as castanhas.
O dia de S. Martinho era conhecido pelo dia de assar castanhas e da prova do vinho novo.
Naquele tempo, toda a gente tinha, durante o ano, vinho em casa, porque toda a gente o fazia. Então, no dia de S. Martinho, todos iam às suas pipas e tiravam uns belos jarros de vinho novo que traziam para casa, onde já se encontravam as castanhas a assar.
Era, então, que começava verdadeiramente a festa. O meu pai que tocava muito bem flauta, para acompanhar a prova do vinho novo e das castanhas, tocava as suas modas, e, toda a gente da família que se encontrava lá em casa, dançava à volta da mesa, festejando com grande entusiasmo e alegria o S. Martinho.
Esta festa acabava, quase sempre, por se prolongar pela madrugada fora, o que dava azo a que as mulheres fossem para a cama, enquanto os homens, como o meu pai e os meus tios, ficassem, toda a noite, conversando, bebendo e comendo castanhas.
Actualmente, as famílias que antes festejavam o S. Martinho já não o fazem e, em minha casa, desde que o meu pai morreu e os meus irmãos partiram, o S. Martinho deixou de se festejar…”

Festas Populares

A FEIRA DE TODOS OS SANTOS

Todos os anos, no período especialmente dedicado à mesma – 31 de Outubro a 2 de Novembro – realiza-se, em Silves, a tradicional “Feira de Todos os Santos”.
As feiras, uma das mais curiosas instituições mercantis do período medieval, caracterizavam-se pela localização, em prazos e termos determinados, de vendedores, compradores e distribuidores, obviando, deste modo, as dificuldades de comunicação e trocas de produtos.
Quase todas realizavam-se em épocas relacionadas com festas da Igreja – ( Silves não foge à regra, já que a sua feira coincide com o dia de “Todos os Santos”, ou seja, 1 de Novembro, e daí, também o seu nome ).
Na evolução das feiras medievais portuguesas há, todavia, que considerar duas fases distintas: a primeira, de formação, que decorre até meados do séc. XIII; a segunda, de implementação e vigor, que se alonga para além do reinado de D. Afonso V.
Nesta segunda fase, que se inicia com D. Afonso III, multiplica-se o número de feiras e amplia-se privilégios concedidos aos feirantes, caso da isenção do pagamento de direitos fiscais ( portagens e costumagens ), passando as mesmas a chamar-se feiras francas, generalizadas a partir de D. João I.
O monarca, ao fomentar, através das feiras, o comércio interno, teve a preocupação, não só, graças a elas, de aumentar e fixar as populações, como, e, sobretudo, engrandecer os réditos da Coroa.
Durante os reinados de D. João II e D. Manuel, são numerosas as cartas que ainda confirmam os privilégios de feiras anteriormente estabelecidas, mas, a partir deste último – devido à expansão portuguesa e, consequentemente, à concentração do comércio nas cidades/portos do litoral – as feiras entram numa fase de verdadeira decadência, se bem que, pontualmente, no séc. XVIII, haja notícia de instituição de feiras que, como sabemos, ainda hoje subsistem.
No que concerne à Feira de Todos os Santos, em Silves, não existem, de facto, dados históricos concretos quanto à sua origem, havendo, no entanto, a possibilidade de relacioná-la com a prática comum estabelecida em território português, após a reconquista, e, com a carta de foral, mas não carta de feira, concedida por D. Afonso III, em 1266, a Silves, à semelhança de Lisboa.
Ao fazermos, porém, tal destrinça – carta de foral e carta de feira – reportamo-nos ao facto de, à época, a feira aparecer-nos como um privilégio concedido nos forais. É, no entanto, a carta de feira que constitui o diploma, por excelência, da sua definição, sem qualquer relação com o tipo de foral da cidade ou vila que o recebe.
A documentação mais recente relativa à Feira de Todos os Santos, em Silves, data do séc. XV, referindo uma feira com a duração de trinta dias.
Posteriormente, em 1924, num artigo publicado em a “Voz do Sul”, intitulado “Silves no Passado e no Presente”, João Suave menciona, então, a sua localização: “… a rua de Nª Srª dos Mártires tinha como limites, a poente, o Largo de Serpa Pinto, e a nascente, o antigo Largo do Poço dos Mártires. Os seus terrenos marginais eram destinados à Feira de Todos os Santos…”